Por Eduardo Guimarães
Vencidas as inacreditáveis
ingenuidade e imprudência de democratas bem-intencionados que chegaram a crer
que a direita midiática continuaria aceitando ser contrariada por uma vontade
popular que as urnas teimam em expressar eleição após eleição desde o histórico
2002, é chegada a hora de ler o script do golpe – que já não se esconde.
Retrocedamos, pois, ao
limiar daquele outono de 1964, quando, já em nome do “combate à corrupção”, os
mesmos meios de comunicação evocavam a “ética” contra o governo trabalhista de
então, que, tenhamos presente, cometia o “crime” de combater a desigualdade
renitente que infecta a nação há 500 anos, só que com muito menos ousadia do
que o atual.
No início dos anos 1960, o Coeficiente de Gini,
que mede a concentração de renda das nações, em sua versão verde-amarela, já
altíssimo, alcançava a marca pornográfica de 0,52 – quanto mais próximo de 1,
maior a desigualdade.
Aos trancos e barrancos, no
limiar do golpe Jango Goulart retomara, em certa medida, o controle do governo,
após tentativas civilizadas de impedir que adotasse medidas contra uma chaga
nacional que escandalizava o mundo e mantinha o país agrilhoado ao atraso.
A expressão “reforma
agrária” também escandalizava, só que aos detentores do que, à época, tinha
muito mais importância do que hoje: a propriedade da terra. E, para colocar
lenha na fogueira, os movimentos estudantil e sindical se entregavam, entre um
devaneio e outro, ao idílio socialista. E o que é pior: sem fazer maior
segredo.
Os arreganhos golpistas,
para se venderem à sociedade, não falavam no “direito” dos ricos a concentrarem
parcela indecente da renda. A ideia de que o povo estava sendo roubado pelo
governo justificaria melhor a conspiração que já germinava nas redações dos
donos da “imprensa”.
Era preciso, pois, construir
“razões” para justificar o uso da força bruta a fim de obter o que, cada vez
mais, ficava evidente que não seria obtido pelas urnas – até porque, na falta
de votos, fraudá-las seria impossível estando os “comunistas” no poder, pois
são os governos que organizam eleições.
Dez anos antes, a mesma
desculpa fora usada para acuar aquele que, heresia das heresias, ousara erigir
uma legislação trabalhista que tantos “custos” acarretara ao “pobre” capital.
A história do Brasil, como
se vê, é a prova de que a “corrupção” sempre foi o artifício do capital e das
elites para manter a esquerda, seu trabalhismo e seu viés distributivista de
renda longe do poder de Estado.
A pontuação do coeficiente
de Gini, naquele outono de 1964, era pouco maior do que é hoje. Com a ditadura,
as coisas foram postas no lugar, ou seja, de 0,52, naquele momento, ao fim da
ditadura foi parar em cerca de 0,60, em um processo que tornou o rico mais rico
e o pobre, mais pobre.
Entre todas as razões para o
golpismo se erguer de novo por estas bandas, portanto, a queda vertiginosa do
Gini que marcou os governos Lula e Dilma explica, como nada mais, a volta das
acusações de corrupção ao grupo político que, no poder, é responsável por, em
dez anos, devolver ao Brasil o que a ditadura levou vinte para lhe roubar – em
2012, o índice é pouco menor do que o de 1964.
No entanto, se as razões de
hoje para o golpismo via acusações de corrupção ao governo de turno são as
mesmas de há meio século, o script do golpe teve que ser reescrito. Não existe
mais o inimigo externo a ameaçar tomar os bens das famílias mais abastadas para
entregá-los à ralé preguiçosa, morena e inculta.
Sem a ameaça de tropas
vermelhas a marchar sobre a nação, não se justifica mais o uso das forças
armadas para golpear a democracia. É por aí que começou a ser construída, em
Honduras, uma modalidade de golpe que há pouco se reproduziu no Paraguai de
forma mais próxima – porém ainda grosseira – do modelo que se pretende aplicar
por aqui.
O golpe “constitucional” de
Honduras inaugurou a modalidade, o do Paraguai a refinou um pouco mais, mas ainda
não o suficiente para ser usada no Brasil. O ansiedade por retomar o poder
naqueles países pecou pelo tempo escandalosamente curto para desenvolver o
processo.
No Brasil, com a comunicação
de massas, o Judiciário, os militares e boa parte da classe política de acordo,
pode-se dar tempo ao tempo, começando a devorar a democracia pelas beiradas.
A aceleração que se está
vendo do processo, portanto, deve-se à gota d’água que foram as eleições de
2012, que extirparam aos golpistas contemporâneos qualquer esperança em obter
do povo a colaboração eleitoral para recolocá-los no poder.
Pela burrice de que padecem
os autoritários, confiaram na “burrice” popular que acreditaria, por exemplo,
em uma revista que há dez anos, semana após semana, só enxerga e denuncia
corrupção em um único partido, em um único nível de governo. Passada a última
surra eleitoral, aplicada bem quando a bomba atômica (o julgamento do mensalão)
foi detonada, não há mais esperança.
A condenação ditatorial de
José Dirceu, José Genoino e outros petistas menos relevantes não conspurcou nem
o PT, nem Lula e muito menos o governo Dilma Rousseff. Acabaram-se as ilusões.
Assim, o golpismo
destro-midiático descobriu que o povo simplesmente se recusa a acreditar que o
PT inventou a corrupção no país – premissa contida no fato de petistas
serem os primeiros políticos a ser condenados pelo STF após mais de cem anos de
história republicana.
Eis que a ingenuidade de
Lula e de Dilma, quase inacreditável, foi um presente dos deuses – ou dos
demônios – para o golpismo tupiniquim. Lula, um estrategista político como
nunca se viu outro no Brasil, nomeou, de olhos fechados, inimigos políticos
para o cargo que dá a quem ocupa a prerrogativa de processar até o presidente
da República.
Dessa maneira, há poucas dúvidas
– se é que existe alguma – de que o doutor Roberto Gurgel aceitará,
gostosamente, a denúncia que a oposição faz àquele que responsabiliza por suas
derrotas eleitorais, o que ela faz por não entender que o que leva o povo a
votar nos que ele indica não são seus belos olhos, mas a distribuição de renda
e oportunidades.
Os golpistas mais espertos,
então, já sabem que anular Lula será insuficiente enquanto a vida do brasileiro
continuar melhorando. Mesmo que consigam fazer o processo dele andar até as eleições
de 2014, de forma a chegar lá desmoralizado, a situação do país reelegerá
Dilma.
Se mesmo após Lula ter sido
inocentado nas investigações sobre o mensalão agora estão conseguindo
envolvê-lo com matérias meramente opinativas de revistas e jornais, o que
custará “descobrirem”, antes de agosto – quando Gurgel será substituído –, que
a presidente, que integrou o governo anterior, também integrou a “quadrilha”?
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