terça-feira, 28 de dezembro de 2010

O digno Brasil da era Lula (1)

Luiz Inácio Lula da Silva completa seu segundo mandato e passa a faixa presidencial para sua sucessora, Dilma Rousseff, com um balanço de muitas conquistas e avanços, e alguns impasses herdados — dos quais não se desvencilhou. Entre suas grandes realizações, revelou-se, ao longo de oito anos, um Presidente brasileiro inédito sob praticamente todos os aspectos que iluminam a ação de um estadista.

por Luiz Carlos Antero* para a revista Nordeste XXI


Nesta retrospectiva, publicada em três, partes, abordamos os exemplos práticos de ações governamentais e posições políticas que fizeram do governo Lula um dos mais bem avaliados da história do Brasil.

Para citar um exemplo, esteve continuamente posto na dignidade com que se postou diante dos Estados Unidos da América. Precisamente o oposto do seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso.

Uma personalidade marcante que se posicionou sobre todas as questões candentes a cada momento da vida política do País e do mundo, encarando-as de frente. Diante dos grandes temas, Lula revelou-se um estadista que, além de patriota e progressista, combinou suas características de gestor vocacionado com o talento e a desenvoltura de um espontâneo protagonista de “talk show”.

Numa situação exemplar, ocorrida entre suas recentes intervenções públicas no mês de dezembro de 2010, em plena cerimônia de balanço do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), arrancou aplausos entusiásticos quando defendeu, com sua contumaz sinceridade, a liberdade de expressão. E prestou solidariedade a Julian Assange — o então encarcerado criador do WikiLeaks, o sítio eletrônico que divulgou farta documentação acerca da (baixa) ação diplomática dos EUA planeta afora.

Em mais uma ocasião, confirmou sua previsível mas sempre aclamada capacidade de levantar platéias e multidões, de todo modo surpreendente pela ousadia. Desde a primeira disputa presidencial, em 1989, até o momento do crepúsculo de seu segundo mandato, conquistou corações e mentes com seu verbo fácil, de reconhecida extração popular, passeando alegre sobre as chacotas dos bem nascidos da elite brasileira e hipócritas de carteirinha.

Em 2002, vitorioso após três insucessos eleitorais (que incluíram duas derrotas, em 1994 e 1998, para o tucano-mor Fernando Henrique Cardoso), nenhuma profética e definitiva sentença assegurava que tudo iria dar certo.

Em setembro deste ano, assinou uma “Carta aos Brasileiros” que mais se assemelhava a um abafado contencioso firmado junto às elites dos seculares cortadores de cabeça que investiram contra as rebeliões populares ao longo da trajetória de nossa formação nacional. Nela — para vencer, tomar posse e também governar —, arriscava suas fichas no “respeito aos contratos” firmados pelos governos precedentes, entre os brindes aos comensais do banquete neoliberal, beneficiários das privatizações.

Da Hercúlea incerteza

Assim, naquele caloroso primeiro dia do ano de 2003, com o povo em festa e nas ruas, Lula recebeu a faixa presidencial do seu antecessor, acompanhada por um gigantesco e comprometedor passivo histórico e social de diversas faces. Muito mais que um simbólico “presente de grego”, estava diante de uma tarefa que comparamos na ocasião a um dos doze fantásticos trabalhos do lendário Hércules: a limpeza das cavalariças de Áugias. O texto, escrito originalmente para a revista Princípios (Ed. 67, Nov/dez/jan/2003), está hoje alojado no sítio do CMI (Centro de Mídia Independente”) .

E, então, saudamos a chegada de Lula com um recurso à milenar tradição grega para ilustrar nossa modesta trajetória secular de um País rico e dotado de um povo bom, generoso, mas vitimado por uma elite já definida como a mais calhorda do planeta:

“Conta a mitologia grega que o herói Hércules teve, entre suas mais gigantescas tarefas, a limpeza das cavalariças de Áugias — ou Augêis, cujo nome, em grego, designa luz, raios de sol e bem poderia ser a terra brasileira, a invejada e cobiçada terra tropical da biomassa, onde, em se plantando, tudo dá, e de fantástico e abundante reino mineral, de fabulosas riquezas.

O trabalho hercúleo consistiu na limpeza das imundícies milenares das estrebarias que simbolizam o mundo das animalidades, para que o sol do espírito pudesse manifestar-se na Terra e propiciar o advento da Idade de Ouro vaticinada pelos profetas, videntes e pitonisas de todos os tempos. Assim, somente assim, poderiam os cavalos do carro de ouro do Sol cavalgar a Terra, conduzindo o Senhor da Luz na Mercavah, o carro de fogo”.

Aos umbrais da verdade

Foram doze os trabalhos de Hércules em relação com as doze casas zodiacais pelas quais passou, completando seu ciclo astrológico ao Sol. Hércules, ou Heracles, o deus solar grego, passou pelas provas iniciáticas marcado pelo simbolismo que bem expressaria a difícil caminhada do governo Lula no País que bem seria aquele lugar referido com insistência nas lendas da Antigüidade: um país maravilhoso, na região donde o Sol se põe, isto é, no Ocidente. Os papiros egípcios citam-no como o Amenti, ou melhor, Amen-Ti, o País Oculto, e determinado lugar dessa mansão, maravilhosa, a montanha do ocidente, a Mansão das Almas osirificadas, justamente onde iam viver aqueles que, iniciados nos mistérios, imortalizavam-se e atravessavam o umbral Ro-sta, que dava para a sala de Maat, a deusa da Verdade”.

E passaram-se oito anos até que o simbolismo desta “deusa” se confrontasse com seu paradoxo (a mentira), armado na disputa eleitoral de mais baixo nível de todo o percurso da jovem República brasileira.
Mentiras em cascata trataram de desfigurar a tarefa de superação da obra histórica e secular do conservadorismo. Esta, avaliada apenas em seu aspecto estritamente policial, afirmaria o fato de que nunca antes na história deste País se investigou tanto, se prendeu tanto, se algemou tanto, inclusive banqueiros do porte de Daniel Valente Dantas — que, depositário dos mais significativos segredos do tucanato, “falou fino” diante do delegado Protógenes Queiroz, hoje deputado federal eleito pelo Estado de São Paulo.


À árdua “limpeza” da herança privatista

Em busca dessa verdade, do percurso mitológico pousamos na realidade brasileira quando o presidente FHC passou solenemente a faixa republicana para o seu sucessor — sob pompas e circunstâncias nas quais posou de democrata que entrega o País sob a mais radiante democracia, preparado para o desenvolvimento. Falso.

Pois, antes de registrar o advento da “era Lula”, dizíamos:

“FHC sai da Presidência com uma nódoa irreparável, determinada por seu inconfundível compromisso com o berço conservador, manchado pelo desprezo ao suor e ao sacrifício do povo humilde, a quem humilhou, e pelas reverências aos poderosos, a quem bajulou e elevou. Ele se despede do poder depois de uma orgia inédita em nossa História, na qual os convidados foram os rentistas internacionais de toda espécie e a nata dos exploradores” .

A melhor compreensão das realizações da “era Lula”, requer, portanto, uma visão atualizada das peraltices de seu antecessor e de sua prática sandice neoliberal.

(continua) 1 2 3

*Luiz Carlos Antero, jornalista, escritor e sociólogo, é membro da equipe de pautas especiais do Vermelho.

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