Nas últimas semanas, os eleitores brasileiros acompanharam o desenrolar de uma série de informações desconexas sobre um escândalo inexistente baseado em um dossiê fantasma a ser montado por uma equipe de arapongas jamais formada. Ainda assim, a história está longe de acabar. O tal dossiê, na verdade um livro sobre os bastidores do processo de privatização durante os governos de Fernando Henrique Cardoso, voltará a ser notícia depois da Copa do Mundo, provavelmente no fim de julho.
É o período mais provável para o autor do texto, o repórter Amaury Ribeiro Júnior, com passagens por alguns dos principais veículos de comunicação do País e colecionador de prêmios jornalísticos, entregar ao Ministério Público Federal as informações e documentos coletados por ele ao longo de dois anos de investigação. Em seguida, vai publicar a obra, 14 capítulos que o autor acredita serem capazes de abalar os alicerces do PSDB às vésperas das eleições de outubro.
Antes, porém, é preciso esclarecer as circunstâncias que, em 5 de abril, levaram a uma mesa do restaurante Fritz, na Asa Sul de Brasília, os cinco personagens de uma trama rocambolesca, cujo início ainda tem pontos obscuros. A partir desse encontro, CartaCapital buscou reconstituir os bastidores dos acontecimentos que resultaram na crise inaugurada a partir de uma reportagem publicada pela revista Veja em 29 de maio, mas costurada antes no submundo político brasiliense, graças, em parte, ao grau de amadorismo dos envolvidos na confusão e em grande medida à guerra eleitoral que se aproxima.
Na batalha de versões estabelecidas entre as partes envolvidas no escândalo do dossiê que ninguém viu, o primeiro a falar foi, justamente, o primeiro a cair, o empresário Luiz Lanzetta, dono da agência Lanza, responsável na campanha da pré-candidata Dilma Rousseff pela contratação de profissionais da área de comunicação, 14 ao todo. No fim de março, Lanzetta diz ter percebido a existência de vazamentos de informações de dentro do comitê do PT, instalado em uma casa no Lago Sul de Brasília. Nessa altura, havia se instalado uma clara divisão na área de comunicação. De um lado, Lanzetta, levado à campanha pelo ex-prefeito de Belo Horizonte Fernando Pimentel, amigo de Dilma Rousseff. De outro, o grupo do paulista Rui Falcão, igualmente próximo à ex-ministra.
Atribui-se o vazamento a essa luta interna pelo controle da área de comunicação na campanha. Tanto Pimentel quanto Falcão se dizem amigos fraternais e negam qualquer divergência ou briga por mais espaço e poder.
Preocupado com os vazamentos, Lanzetta procurou apoio de um velho conhecido de fora da campanha, Ribeiro Jr.. A ideia era contratá-lo para a equipe de Dilma Rousseff de forma a conseguir também, a partir do perfil profissional do repórter, informações sobre os movimentos do adversário. Até aí, nada de novo no front eleitoral brasileiro, onde investigações mútuas entre candidatos são tão comuns quanto a impressão de “santinhos” de campanha.
Ao saber das preocupações de Lanzetta, Ribeiro Jr. decidiu convocar uma fonte antiga, o sargento Idalberto Matias de Araújo, o Dadá, ex-agente da Secretaria de Inteligência da Aeronáutica (Secint). O araponga disse ao jornalista conhecer o nome certo para o serviço na casa do Lago Sul, Onézimo Sousa, ex-delegado da Polícia Federal e investigador com 30 anos de experiência. Decidiu-se marcar o citado almoço no restaurante Fritz. O quinto participante do encontro seria Benedito Oliveira Neto, empresário do setor gráfico e de eventos de Brasília, possuidor de contratos com o governo federal. Oliveira Neto teria sido convidado à reunião por Lanzetta para atuar como “testemunha”. Os dois também se conhecem de longa data.
Na versão de Lanzetta, sustentada por Oliveira Neto e Ribeiro Jr., Onézimo Sousa foi consultado somente sobre a montagem de um esquema de segurança interna do comitê da campanha petista para detectar de onde saíam os vazamentos e arranjar um jeito de evitá-los. Suspeitava-se, ainda, da existência de escutas telefônica e ambientais na casa. Segundo Lanzetta, Sousa os alertou de que era “antipetista”, mas engatou uma conversa sobre uma centena de dossiês que, segundo ele, estariam sendo produzidos por uma equipe encabeçada pelo deputado Marcelo Itagiba (PSDB-RJ) contra aliados da base do presidente Lula, principalmente do PT e do PMDB. “Ele disse que tinha sido do lado de lá, que conhecia esses caras todos”, afirma Lanzetta. O “antídoto” para os vazamentos apontados por Sousa, segundo o empresário de comunicação, seria um sistema de contraespionagem ao custo de 180 mil reais por mês. “Aí eu encerrei o assunto, me levantei e fui embora.”
A CartaCapital Sousa afirmou nunca ter oferecido serviço algum a Lanzetta ou a ninguém do PT. “Da minha parte, tenho como provar tudo que eu disse. Nunca citei o Itagiba. Fui ao restaurante, ouvi uma proposta indecente e saí”, contou o ex-delegado, em entrevista por telefone, na terça-feira 8, de um quarto de hotel localizado fora de Brasília, em local não revelado por ele. A proposta indecente seria a de investigar o candidato José Serra, interpretada por ele como ordem implícita de fazer grampos telefônicos nas linhas do tucano e de seus aliados políticos. Antes de sair do restaurante, o araponga deixou com Lanzetta um cartão de apresentação em que se lia apenas “Onézimo Sousa – Advogado – OAB-DF 13600”, seguido do endereço do escritório e dos telefones de contato.
“Estou com a consciência tranquila, porque foram eles que me chamaram. Até estranhei, porque não sou petista”, diz Sousa. Uma semana depois, o ex-delegado iria encontrar o mesmo cartão nas mãos do jornalista Policarpo Júnior, chefe da sucursal da Veja em Brasília. Como ele pode garantir ser o mesmo cartão? “Fiz uma marca de identificação nele.” Passados alguns dias da reunião no Fritz, uma equipe de repórteres da Editora Abril já estava no encalço dos participantes do almoço. Ou seja, de algu-ma forma, e com bastante rapidez, a informação havia sido vazada para a imprensa. O delegado passou a achar que o vazamento partira de alguém que esteve no encontro no restaurante.
Sousa, a quem Policarpo Jr. conhece há quase duas décadas, foi um dos primeiros a ser contatados. Quando viu o cartão de visita nas mãos do repórter, perguntou como ele havia conseguido o papel. “Ele me disse que tinha vindo da casa”, conta o ex-delegado. “Eu entendi que a Veja tem alguém lá dentro”, afirma. Por isso mesmo, concluiu que havia caído em uma armadilha, principalmente quando soube, logo depois, que também Ribeiro Jr. tinha sido entrevistado.
Por sete semanas, o staff da campanha petista ficou na expectativa sobre o que poderia ser publicado sobre o almoço do restaurante Fritz. Portanto, ao menos os mais bem informados integrantes do comitê sabiam da preparação da reportagem. Nesse intervalo, além de Sousa e Ribeiro Jr., o deputado Rui Falcão foi procurado pela revista. “Eu sabia que o assunto estava no ar. Mas eles não registraram nenhuma declaração minha”, diz Falcão.
Em 29 de maio, uma matéria truncada foi publicada em Veja com foto e declaração do ex-delegado Sousa, mas sem nenhuma linha sobre o livro de Ribeiro Jr., o que, obviamente desmontaria a tese do dossiê tão alegremente sustentada pela mídia nos últimos dias, ainda que, a exemplo do suposto grampo contra o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes (outra contribuição da revista da Editora Abril ao jornalismo “investigativo” à brasileira), faltem alicerces para manter a versão de pé.
Na iminência da publicação, Sousa decidiu enviar uma carta à revista, reproduzida na internet, onde se dizia “obrigado a manter o devido sigilo” sobre conversas com clientes e informou ter sido apenas sondado pelos petistas, apesar de não ter aceitado o serviço por “divergir cabalmente quanto à metodologia e ao direcionamento dos trabalhos a serem ali executados”. Na mesma semana, ele voltaria a falar com Policarpo Júnior, mas desta vez para fazer estardalhaço.
Em 5 de junho, Veja publicou uma entrevista com o ex-delegado, na qual ele soltou o verbo contra Lanzetta e Ribeiro Jr. Acusou o grupo petista de querer grampear Serra e lançou-se numa estratégia de virtual suicídio profissional, ao abrir as intenções de um cliente, mesmo não contratado. No mesmo dia, Lanzetta foi obrigado a se demitir da campanha de Dilma Rousseff. O ex-delegado agiu com o fígado, sobretudo, porque passou a ser acusado de ter sido cooptado pelos tucanos e, no passado, ter participado do núcleo de inteligência de Serra no Ministério da Saúde.
Não é verdade. Sousa jamais trabalhou com o deputado Itagiba ou no Ministério da Saúde, ou mesmo em ambientes comuns na Polícia Federal, onde ambos foram delegados. Quando na PF, Sousa fez fama como investigador profissional e corajoso, sobretudo no combate a traficantes de drogas e de armas no Rio de Janeiro, numa época em que coleta de provas e infiltração entre bandidos valiam mais que escutas telefônicas. Aposentado em 1995, fez carreira de investigador particular na Control Risks, uma renomada agência de investigação inglesa, com filial em São Paulo. De volta a Brasília, montou um escritório de advocacia no Setor Comercial Sul, embora ainda continuasse, eventualmente, a fazer serviços de investigação para uns poucos clientes. O que o levou a corroborar a tal história de arapongagem é uma pergunta que, talvez, só o tempo seja capaz de esclarecer.
Ribeiro Jr. também diz ter como provar “diálogo por diálogo” da conversa ocorrida no restaurante Fritz. Supõe-se, portanto, que tanto ele como Sousa tenham gravado tudo sem que um notasse o que o outro fazia. É certo que um dos dois está blefando, mas Ribeiro Jr. tem a seu favor o depoimento dos outros presentes à mesa, inclusive o sargento Idalberto, embora este não esteja nem um pouco disposto a aparecer em público. Em 2008, Dadá foi acusado de participar ilegalmente da Operação Satiagraha, ao lado do delegado Protógenes Queiroz, mas negou ter feito parte da ação.
Ribeiro Jr. alega ainda ter tido outro encontro com Sousa, 15 dias depois do almoço no Fritz, em uma confeitaria de Brasília, na presença do sargento Dadá. Na ocasião, conta o jornalista, o ex-delegado estava furioso por causa do vazamento da conversa com Lanzetta e o acusou de ter levado o assunto para a imprensa. “Ele achou que nós havíamos passado o cartão dele para a Veja”, explica Ribeiro Jr. “Mas é certo que o cartão dele foi roubado dentro da campanha. Também roubaram um arquivo do meu livro, colocado num computador da casa, daí o pânico (dos tucanos) em relação ao ‘dossiê’.” Sousa nega ter participado desse segundo encontro.
Além disso, Ribeiro Jr. acredita que algum hacker conseguiu entrar em seu notebook enquanto ele esteve hospedado em um hotel de Brasília e retirado um arquivo que só ele tinha: uma reportagem encomendada pelo jornal O Estado de Minas, mas jamais publicada, sobre as investigações que resultariam no livro intitulado Os Porões da Privataria e que conta com alguns trechos publicados na internet. A reportagem não publicada seria o tal “dossiê”. Diz o repórter: “Também roubaram relatórios dos custos- da casa onde fica o comitê de campanha de Dilma. Quando Veja ligou para o Lanzetta, já tinha tudo na mão”.
Enquanto o staff de Serra aproveitou o episódio para tentar consubstanciar uma aura de vítima ao redor do candidato tucano, a história provocou algumas mudanças no comitê petista. Aparentemente, o ex-ministro Antonio Palocci e o grupo paulista reforçaram sua posição na estrutura. Já Pimentel, obrigado a ceder a vaga de candidato ao governo de Minas Gerais ao peemedebista Hélio Costa, tende a se afastar um pouco de Brasília, até para cuidar de sua candidatura ao Senado.
A oposição está disposta a manter o tema aceso no noticiário, embora até o momento os resultados práticos da cruzada sejam quase nulos. Uma comissão mista no Congresso aprovou na quarta-feira 9 o convite a Sousa e a Dadá para deporem. No dia anterior, em viagem a São José dos Campos (SP), Dilma Rousseff negou que Pimentel tenha perdido espaço na campanha e voltou a chamar de “leviandade” a acusação de que alguém de sua equipe de campanha tenha preparado um dossiê anti-Serra. A candidata estava acompanhada de Palocci.
Leandro Fortes
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